Chico Buarque de Hollanda comemora 80 anos hoje, dia 19 de junho de 2024. Considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira, sobre ele se colam há décadas alguns adjetivos. Por exemplo, “gênio”. Outro bastante insistente em biografias, matérias, artigos e resenhas é “tímido”. Ah, a timidez de Chico Buarque, quase tão decantada quanto sua inspiração. Mas, ela seria mesmo verdadeira? Um super tímido filho de escritor teria se tornado ídolo-cantor de rádio, palco e televisão?
O próprio Chico responde. “Nunca fui tímido. Quando eu era garoto, meus pais me chamavam de showboy”, diz ele, direto, no filme “Chico: Artista Brasileiro” (2013), de Miguel Faria Jr. Aliás, mesmo que tornar-se cantor fosse inevitável a um tímido que possuísse o talento musical de um Chico Buarque, esse mesmo tímido teria também sido forçado a gravar documentários onde atua descaradamente junto às câmeras, fingindo que caminha distraído por ruas de Lisboa, de Roma, de Paris, de Budapeste, do Rio?
Pois é o que se vê naquela série monumental de documentários temáticos sobre a obra de Chico Buarque, transmitidos pela Band nos anos 2000 e transformados em uma caixa de DVD’s, cujos títulos trazem os temas, explorados nas canções, a partir de títulos de canções consagradas do compositor: “O Futebol”, “Uma Palavra”, “Cinema”, “Bastidores”, “Romance” etc.
Mas, de onde então teria surgido essa fama de tímido? A resposta pode ser dada em uma palavra: trauma. Mas, na verdade, pede duas: estilo e trauma.
Desde o início, a concisão, a discrição de Chico no palco chamava atenção e se confundia com timidez. Ainda mais que parte de seus companheiros de geração partiram para o espalhafatoso Tropicalismo, cutucando as plateias com roupas coloridas, gritos, rebolados. Perto deles e da estridente Jovem Guarda, o filho de Sérgio Buarque e Memélia, de fato, parecia obrigado a estar nos tablados cantando quase com as mãos nos bolsos.
Porém, o fato é que a performance de Chico é congenial à sua própria música, adequada ao seu estilo fiel à bossa nova, sem os artifícios teatralescos que ficavam tão bem numa Elis Regina, por exemplo. E a reputação da timidez cresceu tanto que, mesmo quando o cantor se solta mais no palco (e acontece), público e crítica parecem decididos a não enxergar.
Agora o trauma. No citado filme, o artista fala de sua experiência no exílio em Roma, no fim dos anos 1960. Ele escolheu a Itália porque lá “A Banda” tinha se tornado um grande sucesso. Acontece que, depois de passada a onda, foi ficando cada vez mais difícil para o brasileiro fazer shows e ele se sentia subindo aos palcos contra a vontade do público, que praticamente não reagia ao restante de seu repertório.
“Eu fiz os shows mais terríveis da minha vida. O meu problema com palco, que as pessoas pensam que é uma coisa congênita, ‘talvez seja um tímido’… eu nunca fui tímido. Quando eu era garoto, meus pais me chamavam de showboy”, diz, com a frase já mencionada. E completa: “Mas aí eu comecei a criar um trauma de público. A sensação de entrar num teatro e saber que ninguém quer te ouvir era terrível”.
O fato é que, já de volta ao Brasil, e incluindo outras motivações, também políticas, Chico Buarque ficou longos 13 anos sem fazer shows profissionais. E as especulações sobre a sua suposta e gigantesca timidez, que o fazia correr das plateias como o diabo da cruz, foram se agravando. Em resumo: o mito pegou.
“O mito é o nada que é tudo”, escreveu Fernando Pessoa. Ao receber o Prêmio Camões, no ano passado, em Lisboa, quatro anos após anunciado, um nada tímido Chico Buarque provocou o então já ex-presidente Jair Bolsonaro, que se recusara a assinar, no exercício do cargo máximo do executivo brasileiro, a honraria.
“Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido”, brincou. E concluiu: “Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões”. Tímido? Qual o quê! Falso tímido, no máximo.
Foto: Divulgação || Por: James Martins (Metro1).